Os Escritos de Santa Clara de Assis

Santa Clara, surpreendentemente, é uma excelente escritora. Não se dedicou ao cultivo da literatura, mas, além de ter recebido em casa uma formação muito boa para o seu tempo, teve o dom de expressar, no que escreveu, toda a riqueza do seu temperamento claro, conciso, preciso elegante e, principalmente, o apaixonamento por Deus, que é todo o seu assunto. Não são muitos os seus escrito que chegaram até nós: uma regra, o testamento, uma bênção e cinco cartas. Quase todos só conhecidos, com precisão, há bem pouco tempo. Sabemos que ela recebeu cartas, algumas hoje perdidas, de São Francisco, do Cardeal Hugolino, de sua Irmã Inês, de Inês de Praga… e podemos imaginar que ela tenha respondido e escrito muito mais. Resta sempre a esperança de que alguma coisa ainda pode aparecer.

Mas o que temos é mais do que suficiente para revelar uma mulher inteligente e culta, que sabia muito bem o que queria e o expressava de maneira muito feliz. Dominava bastante bem o latim e, mesmo nisso, distinguiu-se dos escritores contemporâneos pela simplicidade, clareza e objetividade. Ela é mais próxima dos modernos. Quando faz citações da Bíblia, de São Francisco, de São Bento, dos escritos dos papa, sabe preservar a exatidão quando é necessária mas, em geral, resume, compacta e deixa tudo mais nítido e bonito. Em sua última carta, redigida pouco antes de sua morte, é certo que Clara ditou para outra pessoa escrever. No caso de sua Forma de Vida, de acordo com os estudos mais recentes, ela teve colaboradores. O texto latino dos Escritos, mais do que a tradução, mostra com evidência que Clara tem estilo próprio, inconfundível e forte: só ela mesma é autora dos seus escritos. Para uma boa compreensão dos Escritos de Clara, o mais importante é não perder de vista as bases de sua espiritualidade: ela escreve sobre a sua experiência e Jesus Cristo amado e pobre, que ela partilhou intensamente com Francisco, com as Irmãs e com todos que conseguiu atingir com seus escritos e com seus exemplos de vida. Só escreveu porque sentiu a necessidade de se comunicar: para dar glória a Deus e para ajudar as pessoas.

Cartas de Santa Clara

Introdução
Mas o que temos é mais do que suficiente para revelar uma mulher inteligente e culta, que sabia muito bem o que queria e o expressava de maneira muito feliz. Dominava bastante bem o latim e, mesmo nisso, distinguiu-se dos escritores contemporâneos pela simplicidade, clareza e objetividade. Ela é mais próxima dos modernos. Quando faz citações da Bíblia, de São Francisco, de São Bento, dos escritos dos papa, sabe preservar a exatidão quando é necessária mas, em geral, resume, compacta e deixa tudo mais nítido e bonito. Em sua última carta, redigida pouco antes de sua morte, é certo que Clara ditou para outra pessoa escrever. No caso de sua Forma de Vida, de acordo com os estudos mais recentes, ela teve colaboradores. O texto latino dos Escritos, mais do que a tradução, mostra com evidência que Clara tem estilo próprio, inconfundível e forte: só ela mesma é autora dos seus escritos. Para uma boa compreensão dos Escritos de Clara, o mais importante é não perder de vista as bases de sua espiritualidade: ela escreve sobre a sua experiência e Jesus Cristo amado e pobre, que ela partilhou intensamente com Francisco, com as Irmãs e com todos que conseguiu atingir com seus escritos e com seus exemplos de vida. Só escreveu porque sentiu a necessidade de se comunicar: para dar glória a Deus e para ajudar as pessoas.

Apresentamos cinco cartas de Santa Clara: quatro dirigidas a Inês de Praga e uma, a Ermentrudes de Bruges. Inês de Praga, ou da Boêmia, foi filha do rei Otocar I da Boêmia e da rainha Constância da Hungria. Nasceu em 1205 e morreu em 1282. Foi prometida como noiva a diversos príncipes, inclusive ao futuro Henrique VII, que seria imperador. Teve uma educação esmerada, em diversos mosteiros e cortes. Sempre se dedicou às obras de caridade e, depois que conheceu os frades menores, que chegaram à sua cidade em 1225, animada também pelo testemunho de sua prima Santa Isabel da Hungria, decidiu ser Clarissa. Construiu uma grande obra, em que havia um hospital, um mosteiro e uma igreja de São Francisco. Entrou para a Ordem em 1234, com grande repercussão em toda a cristandade. Mesmo sem nunca terem tido a oportunidade de se conhecerem pessoalmente, ela e Clara estabeleceram uma profunda amizade. Ermentrudes de Bruges nasceu em Colônia, na Alemanha, onde seu pai ocupou um cargo público. Dedicando-se a Deus, começou a peregrinar pelas regiões ribeirinhas do Reno e chegou a Flandres, onde se estabeleceu como Clarissa e fundou diversos mosteiros. Deve ter escrito para Santa Clara. Tentou visitá-la e viajou para a Itália mas, quando chegou à Roma, soube que ela tinha morrido. As cartas são o ponto alto dos escritos de Clara. Nelas nós a encontramos mais livre, pois não tinha que pensar na instituição de sua Ordem. É muito pessoal e solta em uma rica doutrina espiritual. Sua visão de contemplação é o melhor que temos no franciscanismo primitivo. Seu tema é sempre Jesus Cristo, mas quatro aspectos fundamentais devem ser destacados: Jesus Cristo é crucificado, Jesus Cristo é pobre, Jesus Cristo é o esposo e a entrega a ele é feita em uma virgindade cada vez maior.
Mesmo quando não fala de si mesma, Clara deixa evidente que está apresentando uma doutrina que primeiro foi vivida intensamente por ela. Sua experiência de pobre, de contemplativa, de alegre esposa, é vibrante. É também nas cartas que Clara mostra melhor sua grande capacidade de escritora: concisa, clara, carinhosa, rica de citações que mostram como seus interesses eram diversificados, embora sempre na linha da espiritualidade.

Não temos nenhuma das cartas que Inês escreveu para ela e, das diversas que se supõe que tenha escrito para a co-irmã de Praga, só temos quatro. São quatro cartas que têm uma tradição muito antiga, em alemão. No século XVII foram traduzidas para o latim por Lucas Wadding, no seu Annales Minorum, e uma delas já constava da Crônica dos XXIV Gerais. Em 1915, o texto latino foi descoberto na Biblioteca do Capítulo de Santo Ambrósio de Milão por Mons. Aquiles Ratti, futuro papa Pio XI. Tratava-se de uma cópia feita em Praga no fim do século XIII ou nos primeiros anos do século XIV para integrar o processo de canonização de Inês, então enviado à Roma, embora nunca tenha chegado. Uma primeira publicação foi feita por Seton, em 1924, No Archivum Franciscanum Historicum. Wyskocil apresentou uma edição crítica em 1932. Uma boa edição latina é a de I.Boccali, nas “Concordantiae”, que nós procuramos seguir, em confronto com a de Becker, Godet, Matura, mas também com Fontes Franciscani. A carta a Ermentrudes de Bruges representa um problema bem maior. Só a conhecemos através dos Annales Minorum de Lucas Wading. Ele, além de não citar a fonte de onde a copiou, diz que encontrou duas cartas de Santa Clara a essa coirmã, mas apresenta só uma, que tem muitos indícios de ser um resumo das originais. Por isso, os críticos não a aceitam como autêntica. Decidimos incluí-la em nossas Fontes porque os pensamentos são evidentemente clarianos.

1. Carta 1 a Inês de Praga
2. Carta 2 a Inês de Praga
3. Carta 3 a Inês de Praga
4. Carta 4 a Inês de Praga
5. Carta a Ermentrudes de Bruges

Introdução – Carta 1 a Inês de Praga

Não há dúvida de que esta é a primeira carta de Clara para Inês. Os críticos discutem a data. Muitos acham que foi escrita antes de Pentecostes de 1234, quando Inês entrou no mosteiro, argumentando que a carta é dirigida a uma princesa, com um “vós” honorífico e não recorda as outras Irmãs. Para outros, o fato de Clara referir-se à ampla divulgação da fama de Inês colocaria a sua redação depois de 5 de junho de 1235, quando Gregório IX elogiou a Inês em carta dirigida à rainha Beatriz, de Castela. Acreditamos que a carta foi escrita em 1234, por ocasião da entrada de Inês. Clara diz que Inês já preferiu Jesus Cristo e a pobreza e cita várias passagens do ofício de Santa Inês, usadas no rito da consagração das virgens.

Texto da Carta:

À venerável e santa virgem, dona Inês, filha do excelentíssimo e ilustríssimo rei da Boêmia, Clara, indigna flâmula de Jesus Cristo e serva inútil das senhoras enclausuradas do mosteiro de São Damião, sua serva sempre submissa, recomenda-se inteiramente e deseja, com especial reverência, que obtenha a glória (cfr. Sir 50,5) da felicidade eterna. Sabedora da boa fama de vosso santo comportamento e vida, que não só chegou até mim, mas foi esplendidamente divulgada em quase toda a terra, muito me alegro e exulto no Senhor (cfr. Hab 3,18). Disso posso exultar tanto eu mesma como todos os que prestam serviço a Jesus Cristo ou desejam fazê-lo. Porque, embora pudésseis gozar, mais do que outros, das pompas e honras deste mundo, desposando legitimamente, com a maior glória, o ilustre imperador, como teria sido conveniente à vossa excelência e à dele, rejeitastes tudo isso e preferistes a santíssima pobreza e as privações corporais, com toda a alma e com todo o afeto do coração, tomando um esposo da mais nobre estirpe, o Senhor Jesus Cristo, que guardará vossa virgindade sempre imaculada e intacta. Amando-o, sois casta; tocando-o, tornar-vos-eis mais limpa; acolhendo-o, sois virgem. Seu poder é mais forte, sua generosidade mais elevada, seu aspecto é mais belo, o amor mais suave, e toda a graça mais elegante. Já estais tomada pelos abraços daquele que ornou vosso peito com pedras preciosas e colocou em vossas orelhas pérolas inestimáveis. Ele vos envolveu de gemas primaveris e coruscantes e vos deu uma coroa de ouro marcada com o sinal da santidade (Sir 45,14). Portanto, irmã caríssima, ou melhor, senhora muito digna de veneração, porque sois esposa, mãe e irmã (cfr. 2Cor 11,2; Mat 12,50) do meu Senhor Jesus Cristo, destacada pelo esplendor do estandarte da inviolável virgindade e da santíssima pobreza, ficai firme no santo serviço do pobre Crucificado, ao qual vos dedicastes com amor ardente. Ele suportou por todos nós a paixão (Hb 12,2) da cruz e nos arrancou do poder do príncipe das trevas (Col 1,13), que nos acorrentava pela transgressão de nosso primeiro antepassado, e nos reconciliou (2Cor 5,18) com Deus Pai. Ó bem-aventurada pobreza, que àqueles que a amam e abraçam concede as riquezas eternas Ó santa pobreza, aos que a têm e desejam Deus prometeu o reino dos céus (cfr. Mat 5,3), e são concedidas sem dúvida alguma a glória eterna e a vida feliz! Ó piedosa pobreza, que o Senhor Jesus Cristo dignou-se abraçar acima de tudo, ele que regia e rege o céu e a terra, ele que disse e tudo foi feito (Sl 32,9; 148,5)! Pois disse que as raposas têm tocas e os passarinhos têm ninhos mas o Filho do Homem, Jesus Cristo, não tem onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Mas, inclinando a cabeça, entregou o espírito (Jo 19,30). Portanto, se tão grande e elevado Senhor, vindo a um seio virginal, quis aparecer no mundo desprezado, indigente e pobre, para que os homens, paupérrimos e miseráveis, na extrema indigência do alimento celestial, nele se tornassem ricos possuindo os reinos celestes, vós tendes é que exultar e vos alegrar (cfr. Hab 3,18) muito, repleta de imenso gáudio e alegria espiritual, pois tivestes maior prazer no desprezo do século que nas honras, preferistes a pobreza às riquezas temporais e achastes melhor guardar tesouros no céu que na terra, porque lá nem a ferrugem consome nem a traça rói, e os ladrões não saqueiam nem roubam (Mt 6,20). Vossa recompensa será enorme nos céus (Mt 5,12), e merecestes ser chamada com quase toda a dignidade de irmã, esposa e mãe (cfr. 2Cor 11,2; Mt 12,50) do Filho do Pai Altíssimo e da gloriosa Virgem. Creio firmemente que sabeis que o reino dos céus não é prometido e dado pelo Senhor senão aos pobres (cfr. Mt 5,3), porque, quando se ama uma coisa temporal, perde-se o fruto da caridade. Sabeis que não se pode servir a Deus e às riquezas, porque ou se ama a um e se odeia às outras, ou serve-se a Deus e desprezam-se as riquezas (cfr. Mt 6,24). Sabeis que vestido não pode lutar com nu, pois vai mais depressa ao chão quem tem onde ser agarrado. Sabeis que não dá para ser glorioso no mundo e lá reinar com Cristo, e que é mais fácil o camelo passar pelo buraco da agulha que o rico subir ao reino do céu (cfr. Mat 19,24). Por isso vos livrastes das vestes, isto é, das riquezas temporais, para não sucumbir de modo algum ao lutador e poder entrar no reino dos céus pelo caminho duro e pela porta estreita (cfr. Mt 7,13-14). Que troca maior e mais louvável: deixar as coisas temporais pelas eternas, merecer os bens celestes em vez dos terrestres, receber cem por um e possuir a vida (cfr. Mt 19,29) feliz para sempre! Por isso achei bom suplicar vossa excelência e santidade, na medida do possível, com humildes preces, nas entranhas de Cristo (cfr. Fp 1,8), que vos deixeis fortalecer no seu santo serviço, crescendo de bem para melhor, de virtude em virtude (cfr. Sl 83,8), para que aquele que servis com todo desejo do coração digne-se dar-vos os desejados prêmios. Quanto me é possível, também vos suplico no Senhor que vos lembreis em vossas santas preces (cfr. Ro 15,30) de mim, vossa serva, embora inútil, e das outras Irmãs que vivem comigo no mosteiro e vos apreciam. Que com a ajuda dessas preces possamos merecer a misericórdia de Jesus Cristo, para gozar junto a vós da eterna visão. Que o Senhor vos guarde. Orai por (cfr. 1Te 5,25) mim.

Introdução – Carta 2 a Inês de Praga
Esta carta fala de Frei Elias como ministro geral e isso nos ajuda a datá-la. Ele tinha sido vigário geral de 1221 a 1227, mas esteve como ministro geral de 1234 até 1239, quando foi deposto. Mas há outro fato que pode determinar melhor ainda a data da carta: Clara parece aludir à pressão exercida por Gregório IX para que Inês recebesse propriedades e isso foi feito através do decreto “Cum relicta saeculi”, de 18 de maio de 1235. Inês, bem aconselhada por Clara, resistiu, e o papa acabou cedendo em 1237, pela bula “Omnipotens Deus”, em que passava direção do hospital de Praga para os Crucígeros da Estrela Vermelha.

Texto da Carta:

À bem aventurada Inês de Praga, Clara, serva inútil e indigna das pobres damas, saúda a filha do Rei dos Reis, a serva do Senhor dos senhores, a digníssima esposa de Jesus Cristo, e como tal, mui nobre rainha a Senhora Inês, desejando-lhe viver sempre na altíssima pobreza. Dou graças ao Doador da graça, de quem procede, como acreditamos, toda dádiva boa e todo dom perfeito (Tg 1,17). Ele te ornou com o brilho de tantas virtudes e te enobreceu com os sinais de tanta perfeição e te fez uma diligente imitadora do Pai perfeito (cf. Mt 5,48), a fim de que merecesses tornar-te perfeita e os seus olhos não vissem em ti algo de imperfeito. É por causa desta perfeição, que o Rei mesmo te levará para a sua morada celeste, onde Ele está sentado em glória acima das estrelas. Tu, pois, desprezaste as grandezas de um reino terrestre e consideraste de pouco valor o pedido de casamento com o imperador. Desejando apenas a santíssima pobreza, te comprometeste, em espírito de grande humildade e amor, a seguir as pegadas daquele com quem mereceste unir-te intimamente. Como sei que és honrada por causa das tuas virtudes, quero ser breve, não falando demais, embora seja bem possível que não vejas nada demais naquilo que pode dar-te qualquer consolo. Mas, porque só uma coisa é necessária (cf. Lc 10,42), apenas quero exortar-te, por amor daquele a quem te ofereceste como uma santa e agradável oferenda (cf. Rm 12,12), que continues firme no teu propósito, como uma outra Raquel (cf. Gn 29,16). Nunca percas de vista o teu ponto de partida; conserva o que tens; continua fazendo o que fazes agora. Não te detenhas; antes avança com confiança e alegria, em rápida carreira, passo ligeiro e pé seguro, pelo caminho da bem-aventurança que te espera, sem permitir que nem sequer o pó da terra retarde a tua marcha. Não acredites, nem consintas em nada que possa afastar-te do teu ideal ou ser uma barreira no teu caminho, para cumprir os votos ao Altíssimo (cf. Sl 50,14), com a perfeição à qual o Espírito Santo te chamou. Para poderes andar pelo caminho dos mandamentos do Senhor com mais segurança, segue o conselho do Reverendo Padre, Frei Elias, nosso ministro geral. Sua opinião seja-te mais válida do que o parecer dos outros e mais cara do que qualquer dom. Se alguém te disser ou sugerir alguma coisa que impeça a tua perfeição e que é contrária à divina vocação, é claro que deves respeitar essa opinião. No entanto, não sigas aquele conselho, mas entrega-te totalmente ao Cristo pobre como virgem pobre. Olha para Ele, que, por teu amor se fez desprezível, e segue o seu exemplo, tornando-te semelhante a Ele neste mundo. Observa, considera, contempla Aquele que, por tua salvação, se fez o mais desprezado dos homens. Ó rainha muito nobre, não desejes outra coisa, senão imitar o teu esposo, o mais formoso dos filhos dos homens (Sl 45,3), que foi rejeitado, ferido e muitas vezes flagelado no seu corpo, e que morreu na cruz entre muitas angústias. Participando da sua paixão, participarás também do seu reino. Chorando com Ele, com Ele te alegrarás. Sofrendo e morrendo com ele na cruz, possuirás uma morada celeste no meio do esplendor dos santos (cf. Sl 109,3 na tradução vulgata). Então o teu nome será escrito no livro da vida (Ap 2,5) e continuará glorioso entre os homens. Assim obterás para sempre e por toda a eternidade a glória do reino em vez de honras terrestres e transitórias. Do mesmo modo participarás dos bens eternos em vez dos que passam e viverás pelos séculos dos séculos. Desejo-te tudo de bom, caríssima irmã e senhora, na força do Senhor, teu esposo. Roga por mim e por minhas irmãs nas tuas orações a Deus. Nós nos alegramos pelos bens que o Senhor, por sua graça, realiza em ti. Recomenda-nos também de modo especial às tuas irmãs.

Introdução – Carta 3 a Inês de Praga
Esta carta deve ser de 1238. Aos 9 de fevereiro de 1237, Gregório IX publicou o decreto “Licet velut ignis”, impondo a todos os mosteiros da Ordem de São Damião total abstinência de carne, a exemplo dos cistercienses. A confusão foi grande. Sabendo que em São Damião as normas eram diferentes, Inês pede a orientação de Clara. Mas a Santa parece estar incluindo outro assunto, relacionado com a bula papal “Pia credulitate tenentes”, de 15 de abril de 1238, em que Gregório IX tinha aceitado a renúncia de Inês ao hospital de São Francisco para se entregar com suas Irmãs à vida de contemplação. Clara se aprofunda em magníficas considerações sobre a vida de contemplação e de pobreza e sobre sua missão na Igreja. Em todo caso, a carta deve ser anterior ao conhecimento de Clara de que, no dia 11 de maio de 1238, Gregório IX, impôs a Inês a regra hugoliniana. Antes disso, ela observou as normas de São Damião e até pediu uma Regra própria, para a qual queria as orientações de São Francisco sobre o jejum.

Texto da Carta:

Clara, serva humilde e indigna de Cristo e das pobres damas, à Reverendíssima senhora, Irmã Inês, amada sobre todas as pessoas, irmã do ilustre rei da Boêmia, mas também irmã e esposa do Rei dos céus. Desejo-te a alegria da salvação e tudo de bom que se pode desejar naquele que é o autor da salvação. Muito me alegro de tua saúde, tua felicidade e dos bons êxitos no início da tua carreira para obter o prêmio celeste. Tanto mais sinto-me feliz no Senhor, porque sei e acredito que completes maravilhosa o que falta tanto em mim quanto em todas as outras irmãs na imitação do pobre e humilde Jesus Cristo. Alegro-me realmente. E ninguém será capaz de empanar a minha alegria, pois o que se poderia desejar na terra, já tenho. Vejo quanto enganaste as astúcias do esperto inimigo, vencendo não só a soberba, que tanto destrói a natureza humana, como também a vaidade que acirra o coração do homem. É impressionante e ao mesmo tempo inacreditável. Mas tu és capaz disso pelo dom excepcional da sabedoria que a boca de Deus mesmo insuflou em ti. Vejo que são a tua humildade, o vigor da tua fé e a tua pobreza que te fazem abraçar o tesouro incomparável, escondido no campo do mundo, isto é, nos corações humanos (cf. Mt 13,44). Assim alcanças aquele que criou tudo do nada. Considero-te, para usar as palavras do próprio Apóstolo, como cooperadora do próprio Deus e sustentadora dos membros do seu corpo inefável. Quem me poderia impedir de exultar com coisas que merecem tanta alegria? Alegra-te, pois, também tu, no Senhor, caríssima irmã, e nunca te deixes deprimir por amargura e abatimento, ó senhora querida em Cristo, alegria dos anjos e coroa das tuas irmãs. Põe a tua mente naquele que é o espelho da eternidade, e a tua alma no esplendor da sua glória. Põe o teu coração naquele em quem o vigor de Deus se tornou visível e transforma-te, pela contemplação, em imagem perfeita da própria divindade (cf. Hb 1,3; 2cor 3,18). Deste modo sentirás o que sentem os amigos, saboreando a doçura escondida que Deus preparou, desde a eternidade, aos que o amam (cf. Sl 30,20; 1Cor 2,9) e não se deixam iludir pelas coisas com as quais este mundo enganoso prende os seus cegos amantes. Ama totalmente aquele que totalmente se deu por teu amor, aquele cuja beleza o sol e a lua admiram e cuja generosidade, preciosidade e grandeza não têm limites, isto é, ao filho do Altíssimo, que nasceu de Maria, a qual permaneceu virgem depois do parto. Prende-te àquela dulcíssima Mãe, que engendrou tal filho que os céus não podiam conter e que, todavia, ela conteve no pequeno claustro de seu santo corpo e trouxe no seu seio virginal. Quem não se apavora diante das insídias do inimigo do homem que, pela tentação de belezas momentâneas e de glórias enganadoras, procura reduzir a nada aquilo que é o mais sublime no céu? Vejo como é manifesto que a alma do homem fiel, pela graça de Deus, a mais digna das criaturas, é maior do que o próprio céu. Pois os céus e todas as outras criaturas não conseguem conter o Criador, mas somente a alma do homem fiel pode ser sua mansão e sua morada. Isto é apenas possível pela caridade da qual estão privados os ímpios. Ora, aquele que é a Verdade diz: “quem me ama, será amado pelo meu Pai e eu o amarei,e nós viremos a ele e nele faremos a nossa morada” (Jo 14,21.23) . Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe materialmente em seu corpo, da mesma maneira também tu, seguindo os seus passos, especialmente a humildade e a pobreza, sem dúvida alguma, poderás trazê-lo espiritualmente no teu casto e virginal coração. Deste modo conterás aquele pelo qual tu, e todas as criaturas, são contidas. Igualmente possuirás algo mais precioso do que o resto dos bens passageiros que este mundo pode oferecer. De certo modo os reis e as rainhas deste século se enganam. Suas soberbas, por assim dizer, se elevam até o céu e eles andam com a cabeça nas nuvens, mas no fim cairão bem fundo. Agora quero falar-te sobre a questão a respeito da qual me pediste a minha opinião: a saber quais são as festas que o nosso glorioso pai São Francisco nos aconselhou expressamente celebrar de uma maneira especial. Se entendi bem, gostarias de comemorá-las com um jejum um pouco mais ameno. Como mulher prudente, certamente saberás que ninguém de nós, que goze de saúde e força, poderá comer outra coisa senão aquela comida que costumamos tomar na Quaresma. E isto vale tanto para os dias comuns, quanto para as festas. Naturalmente não estão obrigadas a isto as irmãs fracas e doentes. Pois nosso pai nos exortou e mandou que tivéssemos toda consideração possível para com elas, oferecendo-lhes os alimentos mais apropriados. Nós, no entanto, jejuamos diariamente, exceto aos domingos e no Natal. Também não estamos obrigadas a jejuar durante o tempo da Páscoa, conforme escreveu São Francisco, nem nas festas de Nossa Senhora e dos Apóstolos, a não ser que caiam numa sexta-feira. E como já disse, nós que somos sãs e fortes, sempre comemos aquilo que costumamos tomar durante a quaresma. Não te esqueças, no entanto, que o nosso corpo não é de ferro nem temos a dureza de uma rocha. Ao contrário, somos frágeis e inclinadas a toda fraqueza corporal. Uma vez que eu soube que, em questão de jejum, começaste com austeridade, quase insensata e impossível, rogo e peço-te no Senhor, minha caríssima, que evites isso com cautela e com prudência. Pois é melhor louvar ao Senhor e dar-lhe o teu sacrifício, viva, santa e agradável (Rm 12,1), afim de que a tua oferta seja temperada com o sal da sabedoria (cf. Mc 9,48). Sempre te desejo tudo de bom no Senhor, como o desejo também para mim mesma. Lembra-te de mim e de minhas irmãs nas tuas piedosas orações.

Introdução – Carta 4 a Inês de Praga
Não há nenhuma dúvida de que esta é a última carta. Clara já tem junto de si Inês de Assis, que voltou de Monticelli no início de 1253. E se despede “até o trono da glória!”. Nesta carta, além de chegar ao ponto mais alto em todas as suas propostas de espiritualidade e de contemplação, Clara toca o extremo de seu carinho por Inês de Praga, com expressões surpreendentes e muito originais.

Texto da Carta:
À outra metade de minha alma, o singular sacrário do meu cordial amor, à ilustre rainha, esposa do Cordeiro, Rei eterno, Senhora Inês, minha caríssima mãe e filha, amada sobre todas as outras, eu Clara, serva indigna e desprezível de Cristo e das suas servas, que vivem no convento de São Damião em Assis, desejo salvação. Que possas cantar um cântico novo diante do trono de Deus e do Cordeiro, juntamente com as outras santas virgens, e seguir o Cordeiro por onde quer que vá (Ap 5,9; 14,4). Ó Mãe, filha e esposa do Rei de todos os séculos, embora não tenha escrito mais vezes, como gostávamos e desejávamos, tanto tu quanto eu, não estranhes. Nem tampouco penses que por isso o fogo de amor arde menos no coração da tua mãe. O problema é o seguinte: não se acham portadores e parece que há bastante perigo nas estradas. Porém, agora escrevo-te, minha querida, alegro-me contigo e me rejubilo por ti com a alegria do espírito, ó esposa de Cristo. Pois, como a outra virgem santa, a bem-aventurada Inês, deixaste todas as vaidades deste mundo de um modo maravilhoso e desposaste o Cordeiro imaculado que tira o pecado do mundo (Jo 1,29). Feliz, decerto, és tu, a quem é dado possuir este santo convívio e aderir com todo o íntimo do teu coração a Ele, cuja beleza todos os santos dos céus admiram sem cessar. Sua afeição faz a caridade. Contemplá-lo é alimento para a alma. Sua benignidade enche o coração. Sua suavidade sacia o espírito. Sua memória suavemente ilumina o íntimo. Seu odor ressuscita os mortos. Contemplá-lo em sua magnificência beatifica todos os habitantes da Jerusalém do alto. Pois o objeto desta visão é o esplendor da eterna glória, o brilho da luz perpétua e o espelho sem mancha (Sb 7,26). Olha diariamente neste espelho, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e toma-o constantemente como teu modelo, afim de assim adornar, vestir e cingir-te totalmente, tanto interior quanto exteriormente, com uma variedade de virtudes (Sl 45,10.14) e enfeitar-te igualmente com as joias e as vestes como convém à filha e casta esposa do grande Rei. Nesse espelho, portanto, resplandecem a santa pobreza, a sagrada humildade e a inefável caridade, como nele poderás, com a graça de Deus, contemplar. Atende, digo-te, àquilo que este espelho mostra em primeiro lugar, a saber: a pobreza daquele que está deitado no presépio, envolto em panos. Ó admirável humildade, ó estupenda pobreza. O Rei dos anjos, Senhor do céu e da terra, repousa numa manjedoura. Contempla o que te mostra esse espelho em seguida: a humildade junto com a santa pobreza e tantas fadigas e dores que Ele suportou pela redenção do gênero humano. Por fim, observa nesse mesmo espelho a inefável caridade com que quis sofrer na cruz e nela morrer a morte mais cruel. Colocado no lenho da cruz, esse mesmo espelho adverte aos que passam dizendo: “Ó vós todos, que passais pelo caminho, olhai e julgai se existe dor igual à dor que me atormenta” (Lm 1,12). Respondamos a ele que clama e geme, assim nos exorta esse espelho, com uma só voz e com um só espírito: “A pensar nisto sem cessar, a minha alma desfalece dentro de mim” (Lm 3,20). Deste modo então, ó rainha do Rei celeste, o ardor da caridade inflame-te cada vez mais um amor profundo. Contempla além disso as suas inefáveis delícias, as suas riquezas e honras eternas. E o teu coração proclame, cheio de anseio e de amor: “Arrasta-me após ti; corramos no odor dos teus bálsamos, ó esposo celeste. Correrei e não desfalecerei, até me introduzires no teu celeiro; até que a tua mão esquerda estiver sob a minha cabeça e a tua direita me abraçar com ternura e tu me fizeres feliz, beijando-me com os beijos da tua boca” (cf. Ct 1,1-4; 2,4-6). Mergulhada nesta contemplação, lembra-te da tua pobre mãezinha, sabendo que a tua lembrança me faz feliz e que escrevi o teu nome indelével no meu coração. Pois tu me és mais cara do que qualquer outra. Que mais te escreverei? É melhor eu não tentar expressar o meu amor por ti. Pois a voz do meu íntimo me diz que é impossível exprimir o meu afeto por ti, ó filha bendita, e aquilo que consegui escrever nem é a metade do que eu sinto. Peço-te que aceites tudo isso benignamente, confiando que foi a dedicação materna que me faz falar assim. Todos os dias penso em ti e em tuas filhas. A elas recomendo-me a mim e as minhas filhas em Cristo encarecidamente. As minhas filhas, de sua parte, e, de modo especial, a virgem prudentíssima Inês, minha irmã, se recomendam igualmente a ti e às tuas irmãs. Minhas saudações a ti, caríssima filha, e às tuas filhas. Até junto do trono de glória do grande Deus. Orai por nós. Os apresentadores desta carta são os nossos caríssimos irmãos Amado, dileto por Deus e pelos homens, e Bonagura. Pela presente recomendo-os, de todo coração, à tua caridade. Amém.

Introdução – Carta a Ermentrudes de Bruges
A carta a Ermentrudes de Bruges representa um problema maior. Só a conhecemos através dos Annales Minorum de Lucas Wading. Ele, além de não citar a fonte de onde a copiou, diz que encontrou duas cartas de Santa Clara a essa co-irmã, mas apresenta só uma, que tem muitos indícios de ser um resumo das originais. Por isso, os críticos não a aceitam como autêntica. Decidimos incluí-la em nossas Fontes porque os pensamentos são evidentemente clarianos.

Texto da Carta:
Clara de Assis, humilde serva de Jesus Cristo, deseja saúde e paz à sua caríssima Irmã Ermentrudes. Ouvi, querida irmã, que enunciaste, com a graça de Deus, ao mundo. Sinto nisso a maior satisfação e muito me alegro por causa do teu sublime propósito e do admirável fervor com que te dedicas à vida perfeita juntamente com as tuas companheiras. Sê, pois, fiel, te peço, a teu divino esposo, e terás a certeza de receber em recompensa a coroa da vida (cf Tg 1,12). O tempo da provação é curto e o prêmio será eterno. Não te deixes iludir pelo esplendor do mundo que passa como uma sombra. Não se confundam as suas aparências enganadoras. O dragão infernal procurará atemorizar-te com as suas falsas inspirações. Não lhe dês atenção e resiste-lhe com firmeza, fugindo dele. Toma cuidado, minha irmã muito querida, e não te deixes abater pela adversidade, nem seduzir pela prosperidade. Pois, também nos sucessos, a fé é necessária e, na infelicidade, é indispensável. Levanta os olhos muitas vezes ao céu que te convida a tomar a cruz e seguir ao Senhor Jesus Cristo. Depois de muitas tribulações, Ele te introduzirá no Reino de Deus. Ama com todas as tuas forças a Deus, que é infinitamente adorável, e ao seu Filho divino, que quis ser crucificado pela remissão dos nossos pecados. Que a sua memória salutar nunca se apague no teu coração. Medita assiduamente os mistérios de sua paixão e as dores que sofreu a sua santíssima Mãe ao pé da cruz. Vigia e ora em todo momento. Continua firme até o fim na tua vocação, servindo ao Senhor na santa pobreza e em humildade. Nenhum temor te detenha, querida filha, porque Deus é fiel em todas as suas palavras e santo em todos os seus atos. Ele derramará as suas bênçãos sobre ti e sobre as tuas irmãs. Ele será teu defensor, teu consolador, teu redentor e tua recompensa na eternidade. Rezemos uma pela outra, e sob o jugo suave da caridade, observemos mais fielmente a lei de Jesus Cristo.

Testamento de Santa Clara

Introdução:
As Clarissas liam, havia muito tempo, o Testamento de Clara junto com sua Regra, mas esse documento não tinha uma tradição bem documentada. Só se conhecia uma cópia feita por Lucas Wadding em 1628, de um “memorial antigo”, que ele nem identifica melhor. Por isso, foi contestado por alguns estudiosos. Depois de 1976 foram se acumulando referências mais antigas e mesmo alguns códices, como os de Messina, Upsala, Madri e Urbino, que remontam ao século XIV. Hoje em dia, a autenticidade é reconhecida por quase todos os críticos e o texto é bem mais garantido. Para o livro das Fontes Clarianas, usamos o texto e a numeração de M.F. Becker, J.F. Godet, T.Matura, Claire d’Assise: Écrits, Paris, Les Editions du Cerf, 1985. Para este programa na Internet, confrontamos com a edição de “Fontes Franciscani”. Também houve muitas discussões quanto ao tempo em que o Testamento pode ter sido escrito. Parece certo que Clara o ditou depois de 6 de agosto de 1247, quando Inocêncio IV publicou a sua Regra permitindo propriedades. Mas também pode ter feito retocar o escrito até seu último ano de vida, 1253. Clara não alude à Regra, mas é bom lembrar que ela só conseguiu a aprovação papal de sua Forma de Vida dois dias antes de morrer, e o Testamento era um documento com que ela podia garantir os principais valores de sua família. A ideia de fazer um testamento pode ter sido tomada do de São Francisco, mas Clara é totalmente original. Celebra o Senhor por sua vida e por sua vocação e exorta as Irmãs a serem fiéis. Faz uma recordação muito pessoal de sua conversão e dos primeiros passos da Ordem. Afirma com decisão o compromisso com a pobreza absoluta. Insiste sobre o clima de fraternidade evangélica com serviço mútuo. Faz uma reflexão sobre a fé. Exorta à oração e à perseverança e termina com uma bênção. Clara quer deixar uma exortação que mantenha estável sua fundação. Apesar de ser um documento preocupado com a “forma de vida” das Irmãs Pobres, é também autobiográfico e já tem um valor bem maior que o da “Regra” para demonstrar a personalidade ímpar e a espiritualidade da grande mãe da família franciscana. Ela se declara uma simples “plantinha”, sem poder esconder que é uma estrela de primeira grandeza, com luz semelhante à de São Francisco, mas bem própria.

Texto do Testamento:

Em nome do Senhor! (cfr. Col 3,17) Amém! Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda misericórdia (cfr. 2Cor 1,3) e pelos quais mais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida. Por isso diz o Apóstolo: “Reconhece a tua vocação” (cf. 1Cor 1,26). O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho (cf. Jo 14,6; 1Tm 4,12), que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo. Por isso, queridas Irmãs, devemos considerar os imensos benefícios que Deus nos concedeu, mas, entre outros, aqueles que Ele se dignou realizar em nós por seu dileto servo, nosso pai São Francisco, não só depois de nossa conversão mas também quando estávamos na miserável vaidade do mundo. Pois, quando o santo, logo depois de sua conversão, sem ter ainda irmãos ou companheiros, estava construindo a igreja de São Damião, em que foi visitado plenamente pela graça divina, e foi impelido a abandonar totalmente o mundo, numa grande alegria e iluminação do Espírito Santo, profetizou a nosso respeito aquilo que o Senhor veio a cumprir mais tarde. Pois, nessa ocasião, subindo ao muro da igreja, ele disse em voz alta e em francês para uns pobres que moravam ali perto: Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião, porque nele ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo comportamento vão glorificar nosso Pai celestial (cfr. Mt 5,16) em toda a sua santa Igreja. Nisso nós podemos considerar, portanto, a copiosa bondade de Deus para conosco, pois, em sua imensa misericórdia e amor, dignou-se contar essas coisas sobre nossa vocação e eleição (cfr. 2Pd 1,10), através do seu santo. E o nosso bem-aventurado pai Francisco não profetizou isso só a nosso respeito, mas também sobre as outras que haveriam de vir, na santa vocação em que Deus nos chamou. Com que solicitude, então, com que zelo da mente e do corpo devemos observar o que foi mandado por Deus e por nosso pai, para restituir o talento multiplicado, com a colaboração do Senhor! Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação, para que também elas sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para os outros, estamos bem obrigadas a bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior umas às outras para fazer o bem no Senhor. Por isso, se vivermos de acordo com essa forma, daremos aos outros um nobre exemplo (cfr. 2Mc 6,28.31) e vamos conquistar o prêmio da bem-aventurança eterna com um trabalho muito breve. Depois que o Altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração para fazer penitência segundo o exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai Francisco, pouco depois de sua conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu lhe prometi obediência voluntariamente, como o Senhor nos concedera pela luz da sua graça através da vida admirável e do ensinamento dele. Vendo o bem-aventurado Francisco que nós, embora frágeis e fisicamente sem forças, não recusávamos nenhuma privação, pobreza, trabalho, tribulação, nem humilhação ou o desprezo do mundo, e até julgávamos tudo isso as maiores delícias, como pôde comprovar frequentemente em nós a exemplo dos santos e dos seus frades, alegrou-se muito no Senhor. E movido de piedade para conosco, assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com seus irmãos. E assim, por vontade de Deus e do nosso bem-aventurado pai Francisco, fomos morar junto da igreja de São Damião, onde em pouco tempo o Senhor nos multiplicou por sua misericórdia e graça, a fim de que se cumprisse o que tinha predito por seu santo. Pois antes tínhamos morado em outro lugar, embora por pouco tempo. Depois escreveu para nós uma forma de vida, principalmente para que perseverássemos sempre na santa pobreza. E não se contentou em exortar-nos durante a sua vida com muitos sermões (cfr. Act 20,2) e exemplos ao amor e observância da santa pobreza, mas nos deu muitos escritos, para que depois de sua morte não nos desviássemos dela de modo algum, como o Filho de Deus, enquanto viveu neste mundo, não quis jamais afastar-se da santa pobreza. Também o nosso bem-aventurado pai Francisco, imitando os seus passos (cfr. 1Pd 2,21), pelo exemplo e pelo ensinamento, nunca se desviou, em toda a vida, de sua santa pobreza, que escolheu para si e seus irmãos. Por isso eu, Clara, serva de Cristo e das Irmãs Pobres do mosteiro de São Damião, embora indigna, e verdadeira plantinha do santo pai, considerando com as minhas outras Irmãs a nossa tão alta profissão e o mandamento de tão grande pai, como também a fragilidade de outras, que temíamos em nós mesmas depois do falecimento do nosso pai São Francisco, que era a nossa coluna e única consolação depois de Deus e o nosso apoio (cfr. 1Tm 3,15), repetidas vezes fizemos nossa entrega voluntária a nossa santíssima Senhora Pobreza, para que, depois de minha morte, as Irmãs que estão e as que vierem não possam de maneira alguma afastar-se dela. E como sempre fui cuidadosa e solícita em observar a santa pobreza que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai Francisco, e em fazer que fosse observada pelas outras, assim sejam obrigadas até o fim aquelas que vão me suceder no ofício a observar e fazer observar sua santa pobreza, com o auxílio de Deus. Para maior segurança, tive a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em cujo tempo começamos, e dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus privilégios a nossa profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai, para que em tempo algum nos afastássemos dela de maneira alguma. Por isso, de joelhos dobrados e prostrada de corpo e alma, recomendo todas as minhas Irmãs atuais e futuras à santa mãe Igreja Romana, ao Sumo Pontífice e principalmente ao senhor cardeal que for encarregado da Ordem dos Frades Menores e de nós, para que, por amor daquele Deus que pobre foi posto no presépio (cfr. Luc 12,32), viveu pobre no mundo e ficou nu no patíbulo, faça com que sempre o seu pequeno rebanho (cfr. Lc 12,32), que o Senhor Pai gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo do nosso bem-aventurado pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade do seu Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe, observe a santa pobreza que prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco e nela digne-se encorajá-las e conservá-las. E como o Senhor nos deu nosso bem-aventurado pai Francisco como fundador, plantador e auxílio no serviço de Cristo e naquilo que prometemos ao Senhor e ao nosso pai, e como ele durante a sua vida mostrou tanto cuidado em palavras e obras para tratar e cuidar de nós, sua plantinha, assim recomendo e confio minhas Irmãs, presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem-aventurado pai Francisco e a toda a Ordem, para que nos ajudem a crescer sempre mais no serviço de Deus e principalmente a observar melhor a santa pobreza. Se em algum tempo acontecer que as Irmãs tenham que deixar este lugar para se estabelecer em outro, sejam obrigadas, em qualquer lugar em que estiverem depois da minha morte, a observar a referida forma de pobreza que prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco. A que estiver no ofício deve ser tão solícita e previdente como as outras Irmãs para não adquirir nem receber junto a esse lugar nenhuma terra a não ser a que for exigida pela extrema necessidade para a horta em que temos que cultivar verduras. Mas se em algum lugar, para honestidade e para isolamento do mosteiro for conveniente ter mais terreno além da cerca da horta, não permitam que seja adquirido ou mesmo recebido mais do que for pedido pela necessidade extrema. E essa terra não deve ser trabalhada nem semeada mas ficar sempre baldia e inculta. No Senhor Jesus Cristo, aconselho e admoesto a todas as minhas Irmãs, presentes e futuras, que sempre se empenhem em seguir o caminho da santa simplicidade, da humildade, da pobreza e também uma vida honesta e santa, como aprendemos de Cristo e de nosso bem-aventurado pai Francisco desde o início de nossa conversão. Foi dessas coisas que, não por nossos méritos mas só por misericórdia e graça de quem o deu, o Pai das misericórdias, espalhou-se o perfume (cfr. 2Cor 1,3; 2,15) da boa reputação, tanto para os de longe como para os de perto. E amando-vos umas às outras com a caridade de Cristo, demonstrai por fora, por meio das boas obras, o amor que tendes dentro, para que, provocadas por esse exemplo, as Irmãs cresçam sempre no amor de Deus e na mútua caridade. Rogo também à que estiver a serviço das Irmãs que trate de estar à frente das outras mais por virtudes e santos costumes do que pelo ofício, de forma que suas Irmãs, provocadas por seu exemplo, não obedeçam tanto por dever como por amor. Seja também previdente e discreta para com suas Irmãs, como uma boa mãe faz com suas filhas, tratando especialmente de provê-las de acordo com as necessidades de cada uma, com as esmolas que forem dadas pelo Senhor. Também seja tão bondosa e acessível que possam manifestar com segurança suas necessidades e recorrer a ela confiadamente a qualquer hora, como lhes parecer conveniente, tanto por si mesmas, como por suas Irmãs. Mas as Irmãs que são súditas lembrem-se de que renunciaram à própria vontade por amor de Deus. Por isso quero que obedeçam à sua mãe, como prometeram ao Senhor, espontaneamente, de modo que sua mãe, vendo o amor, a humildade e a unidade que as Irmãs têm entre si, possa levar mais facilmente o peso que tem que suportar por causa do ofício, e o que é molesto e amargo mude-se em doçura para ela pelo bom comportamento das Irmãs. E como é estreito o caminho e apertada a porta por onde se vai e se entra na vida, são poucos os que por aí passam e entram (cfr. Mt 7,13.14). E se há alguns que nele andam por um tempo, são pouquíssimos os que nele perseveram. Mas felizes são aqueles a quem foi dado andar por ele e perseverar até o fim (cfr. Sl 118,1; Mt 10,22). Tomemos cuidado, portanto, para que, se entramos pelo caminho do Senhor, de maneira alguma nos afastemos dele em algum tempo por nossa culpa e ignorância, para não ofendermos a tão grande Senhor, a sua Virgem Mãe, a nosso bem-aventurado pai Francisco, à Igreja triunfante e mesmo à militante. Pois está escrito: Malditos os que se desviam de vossos mandamentos (Sl 119,21). Por isso dobro os joelhos diante do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. Ef 3,14) para que, pela intercessão dos méritos de sua Mãe, a gloriosa Virgem Santa Maria, de nosso bem-aventurado pai Francisco e de todos os santos, o Senhor que deu o bom começo dê o crescimento (cfr.1Cor 3,6.7) e também a perseverança até o fim. Amém. Deixo-vos isto por escrito, minhas queridas Irmãs, presentes e futuras, para que seja melhor observado em sinal da bênção do Senhor e do nosso bem-aventurado pai Francisco e da minha bênção de mãe e vossa serva.